terça-feira, 15 de dezembro de 2009

A BRINCADEIRA E A CULTURA INFANTIL

Tizuko Morchida Kishimoto

Se desejamos formar seres criativos, críticos e aptos para tomar decisões, um dos requisitos é o enriquecimento do cotidiano infantil com a inserção de contos, lendas, brinquedos e brincadeiras.
Vygotski (1988) indica a relevância de brinquedos e brincadeiras como indispensáveis para a criação da situação imaginária. Revela que o imaginário só se desenvolve quando se dispõe de experiências que se reorganizam. A riqueza dos contos, lendas e o acervo de brincadeiras constituirão o banco de dados de imagens culturais utilizados nas situações interativas. Dispor de tais imagens é fundamental para instrumentalizar a criança para a construção do conhecimento e sua socialização. Ao brincar a criança movimenta-se em busca de parceria e na exploração de objetos; comunica-se com seus pares; expressa-se através de múltiplas linguagens; descobre regras e toma decisões.
A falta de qualidade das instituições infantis redunda na seleção inadequada de aspectos da cultura relacionados com o saber instituído da escola elementar: a escrita e os números, excluindo elementos caracterizadores da cultura do país como o carnaval, rituais do Bumba meu boi, festa de coroação dos reis, capoeira, futebol, as lendas, contos e a multiplicidade de brincadeiras oferecidas pelo folclore infantil. Nota-se, também, a falta de materiais típicos da fauna e flora brasileiras, como folhas, galhos, pedras, conchas, frutos, flores, penas. A produção de objetos não reflete a riqueza do mundo cultural e natural. Mesmo o uso da sucata industrial fica empobrecido com a falta de tratamento que ofereça identidade cultural a tais objetos. O imaginário infantil não reflete a riqueza folclórica, com suas lendas da vitória-régia, jibóia, boto cor-de-rosa, que habitam regiões da Amazônia e Mato Grosso. Acumulados por povos indígenas, negros e brancos, traços que marcam a pluralidade cultural brasileira, as lendas e contos presentes no imaginário das crianças dos tempos passados, foram excluídos dos conteúdos escolares ocasionando a separação entre a escola e a cultura (Kishimoto, 1993a). A riqueza das lendas e contos retratadas por pintores como Portinari, manifestam-se nas brincadeiras tradicionais como a mula-sem-cabeça representando o pegador nas noites escuras de Brodoski, romancistas como Rego (1969), que em Menino de Engenho, contam suas lembranças dos tempos do engenho de açúcar, em que se brincava de capabode, a brincadeira de faz-de-conta em que só brancos construíam engenhos de açúcar assumindo o papel de proprietário, em que se simulava o “Antônio Silvino”, o cangaceiro do nordeste, empunhando armas e organizando batalhões (Kishimoto, 1993a). As imagens sociais dos tempos passados perdem-se, guardados em gavetas que não foram mais abertas em virtude do novo modo de vida dos tempos atuais que impede a transmissão oral dentro de espaços públicos. Cabe à escola a tarefa de tornar disponíveis o acervo cultural dos contos, lendas, brincadeiras tradicionais que dão conteúdo à expressão imaginativa da criança, abrir o espaço para que a escola receba outros elementos da cultura que não a escolarizada para que beneficie e enriqueça o repertório imaginativo da criança. Concretizar pressupostos de Vygotski (1988, 1987, 1982), de que a cultura forma a inteligência e que a brincadeira de papéis, favorece a criação de situações imaginárias e reorganiza experiências vividas é, também, o caminho apontado por Bruner (1996), que abre as portas da escola para a entrada da cultura e condiciona o saber a um fazer. Aprendizado esse que começa com brincadeiras em que se aprende a criar significações, a comunicar-se com outros, a tomar decisões, decodificar regras, expressar a linguagem e socializar.
Pesquisas efetuadas em creches e pré-escolas demonstram que os materiais privilegiados pelas instituições infantis continuam sendo os gráficos e os educativos. (Kishimoto, 1996c, 1996b, Canholato, 1990, Pinnaza, 1989), referendando mais uma vez valores relacionados às atividades didáticas, predominando o modelo escolar, marginalizando a expressão, criatividade e iniciativa da criança. A cultura brasileira, na sua forma pluricultural, rica em folclore, não habita os domínios escolares. É essa seletividade a que se refere Forkin (1996), ao apontar como a educação relaciona-se com aspectos da cultura. A inversão desse modelo pode efetuar-se por um processo político de introdução dos elementos folclóricos no contexto da educação, à semelhança do Japão, que nos anos 70, ao perceber o desaparecimento das brincadeiras tradicionais, fruto da intensa industrialização e urbanização do país, introduz medidas políticas visando recuperá-las, a partir da inserção de brinquedos e brincadeiras nos currículos infantis. (Kishimoto, 1995c, 1996a).
Diante de tal situação destacam-se os trabalhos de centros de pesquisa e de estudos: o Laboratório de Brinquedos e Materiais Pedagógicos da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, desde 1993, dispõe de um banco de dados sobre brincadeiras tradicionais brasileiras para subsidiar profissionais no trabalho pedagógico, (Kishimoto, 1993b); a Fundação Carlos Chaga, de São Paulo, realiza e divulga pesquisas sobre creches e Universidades como a de Ribeirão Preto, Santa Maria, Curitiba, entre outras, dispõem de projetos de capacitação de profissionais de creches e pré-escolas aproximando a cultura da escola com a inclusão das brincadeiras infantis. Apesar de marginalizadas, a educação infantil dispõe de centros que batalham pela expansão da educação infantil e melhoria da qualidade de formação de profissionais. Entretanto, dado as dimensões continentais do país, somente medidas políticas poderão socializar experiências restritas a centros de excelência oferecendo às crianças brasileiras o direito não só de acesso à educação infantil como o de experimentar o prazer de aprender a fazer por meio de brincadeiras